Responsável pela cheia no Pantanal e 40% da água potável do país, Cerrado está em crise

No Cerrado de MS, a Bacia do Taquari teve redução de 46% da vegetação nativa nos últimos anos

Liana Feitosa, Priscilla Peres – Midiamax

O Cerrado, o maior bioma que cobre o território de Mato Grosso do Sul, está em grave crise. É ele que abastece 100% da água que corre no Rio Paraguai na porção brasileira, formando o Pantanal. Na verdade, é bem mais que isso: nacionalmente, o Cerrado é responsável por cerca de 40% da água potável de todo o país.

No entanto, esse importantíssimo bioma tem perdido o equivalente a pelo menos 30 piscinas olímpicas de água a cada minuto. Essa quantidade de água conseguiria abastecer o Brasil inteiro, num período de 24 horas, por três dias e meio.

As informações decorrem de 12 meses de investigação conduzida pela Ambiental Media — uma organização de jornalismo investigativo dedicada à cobertura de questões ambientais, climáticas e socioeconômicas — e resultaram em um documento chamado ‘Cerrado – O Elo Sagrado das Águas do Brasil’.

O levantamento foi elaborado com base em dados da ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) e do MapBiomas, considerando índices como vazão, pluviosidade e evapotranspiração potencial para avaliar a atual condição do bioma.

Sem o Cerrado, o Pantanal seca, o que coloca em xeque não só a sobrevivência do Pantanal, como o abastecimento de água de 8 das 12 regiões hidrográficas brasileiras. Cerrado seco coloca em risco a vida, tanto vegetal como animal — e, claro, o ser humano. 

A importância do Cerrado para o Pantanal

O geógrafo Yuri Salmona, coordenador científico do levantamento e doutor em Ciências Florestais pela UnB (Universidade de Brasília), explica que a água que infiltra nas cabeceiras pantaneiras, na região do Cerrado, é extremamente importante para o abastecimento e a manutenção dos fluxos de água do Pantanal.

Essa água que infiltra nas cabeceiras vem de bacias, entre elas, a do Taquari. “Essa bacia tem sido muito ocupada por irrigação e desmatamento, o que nos preocupa bastante”, pontua.

Índices em aumento

Bacia do Rio Taquari. (Foto: Reprodução/Silvio Andrade/Segov)

Para se ter uma ideia da gravidade do problema, o levantamento apontou que a Bacia do Taquari teve aumento acentuado da evapotranspiração potencial, com acréscimo de 12% nos últimos anos. 

A evapotranspiração marca a quantidade máxima de água que poderia ser transferida para a atmosfera por evaporação e transpiração se a água estivesse plenamente disponível no solo e nas plantas. 

vazão mínima de segurança também aumentou em 14%. Esse indicador, também chamado de Q90, representa a vazão mínima que um rio mantém em 90% do tempo em um período analisado. 

Sendo assim, a redução da Q90 nas bacias do Cerrado significa que os rios estão perdendo sua capacidade de manter um fluxo estável de água. 

Somando-se a esses índices preocupantes, está a redução de 46% da vegetação nativa na Bacia do Taquari. Entre todas as bacias analisadas, essa foi a que registrou a maior redução de vegetação nativa do país, impactando diretamente o ciclo da água e os serviços ecossistêmicos. 

Segundo o levantamento, essa degradação “pode levar ao aumento da erosão do solo, afetando a qualidade dos cursos d’água e agravando os efeitos das mudanças climáticas na região”.

Bacia do Paraná

A situação da Bacia do Paraná, cujas águas banham Mato Grosso do Sul, também é preocupante. “Quando a gente olha para os dados da Bacia do Paraná, vemos que ela é uma bacia que sofreu um impacto meio parecido com o que a gente observa no bioma Cerrado na totalidade”, contextualiza o pesquisador.

A Bacia do Paraná teve uma redução da vazão em mais de 17% da água e um aumento da evapotranspiração potencial. 

“E o que é isso? É a quantidade de água que evapora, que sai das plantas e da superfície do solo para a atmosfera, por conta da radiação solar chegando, um dos efeitos das mudanças climáticas. Isso é perda de água para a atmosfera”, explica Salmona.

Além disso, houve também uma redução da chuva, de cerca de 21%, na Bacia do Paraná, ao longo dos anos. 

“Somando a todo esse cenário de mudança climática, que impacta o aumento da evapotranspiração potencial e a diminuição da chuva, é nosso dever pensar em ações de mitigação, de cuidado, de adaptação às mudanças climáticas”, alerta o pesquisador.

As medidas para isso seriam ações que incluem a restauração de áreas degradadas e a proteção dos mananciais, por exemplo. 

“Mas o que está acontecendo na Bacia do Paraná é exatamente o oposto. Desde a década de 80 até os dias atuais, houve uma redução de mais de 31% na área de vegetação nativa — ou seja, um aumento equivalente no desmatamento”, destaca Salmona. 

Enquanto o desmatamento cresce, a área cultivada com soja cresceu a passos largos, expandindo de 400 mil hectares para mais de 4 milhões de hectares, representando um aumento de 978%.

“É crucial destacar que essas áreas de soja são predominantemente irrigadas, demandando grandes volumes de água e causando impactos significativos no ciclo hidrológico, pois reduzem a infiltração no solo, alteram os padrões de evapotranspiração e consomem quantidades expressivas de água através da irrigação”, afirma o pesquisador.

E o futuro dos biomas com a crise no Cerrado?

Cerrado com e sem chuva. (Ilustração: Rodolfo Almeida / Reprodução Ambiental Media)

Para descobrirmos quais serão os efeitos dessas ações que impactam o Cerrado, nem é preciso pensar em longo prazo, garante o geógrafo. As crises no abastecimento de água nas cidades já são um resultado disso.

“Não precisamos ir longe, os efeitos já são sentidos desde agora. Detectamos uma redução na quantidade de água disponível nos rios, e isso já tem levado a recorrentes racionamentos de águas em capitais, em grandes cidades”, expõe o pesquisador.

E o problema não fica na zona urbana. “Conflitos por água na área rural, entre comunidades e irrigantes, quebra de safras, ou seja, a nossa capacidade de ter previsibilidade climática diminui”, completa Salmona.

Clima instável e prejuízos nas lavouras 

A crise hídrica que atinge o Cerrado também afeta a definição das estações do ano. “Saber qual é o tamanho do período chuvoso, quanto vai chover, isso está cada vez mais instável, então, são problemas que a gente já sente”, cita o geógrafo. 

“Como consequência, temos a quebra de safra com muito prejuízo e também aumento de preços de alimentos”, acrescenta. 

Diante de tudo isso, as projeções para o futuro não são otimistas; por isso, exigem não apenas atenção, mas ação imediata.

Como ficará o Cerrado

Mas, afinal, para onde esses dados apontam? Segundo o pesquisador, para uma redução ainda maior na vazão dos rios; ou seja, uma queda ainda maior na capacidade dos rios de escoar água.

“Em média, a gente tem uma estimativa de que vai ter uma redução na vazão dos rios do Cerrado em mais de 33% até 2050”, afirma Salmona.

“Estudos da ANA [Agência Nacional de Águas] apontam para o cenário ser ainda pior. Tem uma redução de 40% na vazão dos rios do Cerrado até o ano de 2040. Em alguns rios, não em todos”, completa.

Assim, com rios mais secos e com menor vazão, haverá aumento na erosão do solo, na desertificação de áreas, seca de nascentes e perda de biodiversidade.

Além disso, a menor disponibilidade de água vai aumentar o risco de queimadas, aumentar doenças respiratórias, má qualidade do ar e facilitar a ocorrência de alagamentos e enchentes devido a chuvas desequilibradas.

“Então, pensando que a demanda por água vem aumentando e não reduzindo, a gente tem que ter ações contundentes de restauração, de proteção, de demarcação de território de comunidades tradicionais que sabem conviver com o Cerrado de pé. Essas são algumas ações que me parecem que deveriam preocupar a todos”, finaliza o pesquisador.

Corumbá na cheia. (Foto: Henrique Arakaki, Midiamax)